A Isonomia de Vencimentos na Constituição Brasileira

A Isonomia de Vencimentos na Constituição Brasileira

 

 

A Isonomia de Vencimentos na Constituição Brasileira

Wage Isonomy in the Brazilian Constitution

Autor:

Vladmir Oliveira da Silveira 

vladmir@aus.com.br

Revista Acadêmica APG Edição Especial Ano XVII – Numero 3 – 2004

RESUMO

Após a promulgação da Emenda Constitucional n.19/l99B, dentre inúmeras questões jurídicas que têm despertado a atenção dos estudiosos, uma das mais polêmicas, sem dúvida, é a atinente à exclusão da menção expressa da isonomia do artigo 39, parógrafo 1° da Constituição Federal.

Nesse sentido, o objetivo deste ensaio será analisar o referido princípio da isonomia e o seu alcance em relação aos servidores públicos, principalmente no que tange à isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados.

Palavras-chave: Isonomia, Vencimentos, Servidores Públicos.

 

ABSTRACT

After the promulgation of the Constitutional Amendment n.19/1998, among countless juridical subjects that have focused the specialists’ attention, one of the more controversial, with no doubt, is that related to the exclusion of the expressed mention of isonomy from the first paragraph of the article 39 of the Federal Constitution.

ln that way, the objective of this paper is to analyze the referred principie of isonomy and its reach for the officials, mainly in what related to the isonomy of wage for positions with the some or similar attributions.

Key words: lsonomy, Wage, Official.

 

A isonomia

 

Antes de qualquer análise mais profunda, convém frisar que o princípio da isonomia decorre imediatamente do princípio republicano (estruturante), sendo, consequentemente, um princípio constitucional geral (Canotilho, 2001) do ordenamento brasileiro. Desse modo, deve ser analisado e aplicado no  contexto do sistema constitucional.

A isonomia pode ser traduzida como a igualdade diante da lei,  diante dos atos infralegais, ou seja, diante de todos os manifestações do poder, sejam materializadas em fatos concretos, quer sejam expressas em normas.

Em outras palavras, pode-se dizer que nenhuma lei poderá ser editada em desconformidade com a isonomia existente entre os cidadãos.

Atualmente, esse princípio está presente na grande maioria das Constituições em vigor no mundo e, na Constituição Brasileira de 1988, abre o Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), do Título 11 (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), estabelecendo que “todos são iguais  perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”

Nesse sentido, o princípio da isonomia exprime a igualdade legal para todos, à medida que institui a igualdade formal, qual seja, que todos são iguais perante a lei. Porém, esse preceito magno não é só voltado para o aplicador da lei, mas também paro o próprio legislador.

E, justamente, por isso o antigo artigo 39, parágrafo lº, da Constituição Federal afirmava que” a Lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos paro cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvados as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho”.

Ocorre que a Emenda Constitucional n. 19/1998, que modificou esse dispositivo constitucional estabelecendo critérios mais específicos acerca da fixação do vencimento e remunerações relacionados aos servidores públicos, retirou a menção expressa à garantia. Ou seja, o Poder Reformador, pretendendo ajustar os critérios para o recebimento dos vencimentos por parte dos servidores públicos, deixou de mencionar a expressão “isonomia de vencimentos” no novo texto da Carta Magna.

Note-se, todavia, que a nova redação não proibiu, nem restringiu, apenas deixou de mencionar um princípio que continua expresso e vigorando em nossa Constituição. Entretanto, a simples alteração desse dispositivo constitucional bastou para alguns operadores do direito, e até doutrinadores, passassem a sustentar a suposta inaplicabilidade do princípio da isonomia de vencimentos entre os servidores públicos.

Portanto, 0 objetivo deste ensaio será analisar o referido princípio da isonomia e o seu alcance em relação aos servidores públicos, principalmente no que tange à isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas.

 

 Princípio e regra no direito constitucional

 

Primeiramente, convém analisar o sistema constitucional, em que a isonomia está inserida, para, num segundo momento, identificar a sua aplicabilidade no caso concreta. Cumpre esclarecer que se adotam, na íntegra, os ensinamentos e a doutrina de José Joaquim Gomes Canotilho (2001), que encara as regras e os princípios como sendo duas espécies de normas, havendo, portanto, entre elas, somente uma distinção entre espécies de um mesmo gênero.

De acordo com o jurista português, a distinção entre norma e princípio é uma tarefa complexa, pois compreende a reflexão sobre pelo menos cinco critérios, a saber:

1) grau de abstração – enquanto os princípio possuem um elevado grau de abstraçõo, as regras têm uma abstração relativamente reduzida;

2) grau de determinabilldade – no caso concreto, se os regras são passíveis de aplicação direta, os principias, por serem de sua natureza a indeterminação e abstração, demandam mediações concretizadoras;

3) caráter de fundamentalidade – diferentemente das regras, os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico, devido à sua posição hierárquico no sistema de fontes, ou sua relevância basilar dentro do sistema jurídico;

4) proximidade da idéia de direito – os princípios se constituem verdadeiros standards, juridicamente vinculantes e inseridos nas exigências de justiça, conforme o teoria de Dworkin (1977), ou na idéia de direito, de acordo com Larenz ( 1997). Por sua vez, as regras nem sempre refletem esses conceitos, tendo, na maioria dos vezes, conteúdo sistemático (adjetivo); e,

5) natureza normagenética – os princípios constituem a ratio das regras,  isto é, são normas que estão na origem das regras jurídicas, exercendo  assim uma função normagenética de fundamentação.

Disso tudo, pode-se concluir que os princípios são normas multifuncionais pois, além de desempenharem um papel argumentativo dentro do ordenamento, também prescrevem normas de condutas, no que pese 0 elevado grau relativo de abstração. Nesse sentido, do mesmo modo que atuam como cânones de interpretação, possibilitando a identificação da ratio legis de uma prescrição legal, em outras ocasiões desempenham função integrativa e complementar do direito, revelando regras que não estão expressas em nenhuma disposição legal.

Neste estudo, os princípios serão analisados, sobretudo, na sua qualidade de normas genuínas, qualitativamente distintas dos regras, conforme já explicitado. Nesse sentido, deve-se frisar que, diferentemente das regras, dentro do sistema jurídico, os princípios irão também aferir problemas de peso, e não somente de validade. Em outras palavras, pode-se dizer que enquanto as regras suscitam apenas relações de validade, os princípios ponderam valores com objetivos de acomodação do sistema.

Portanto, nos próprias palavras de J. J. Gomes Canotilho

[ … ] em virtude da sua referência a valores ou da sua relevância ou proximidade axiológica (da justiça, da idéia de direito, dos fins de uma comunidade), os princípios têm uma função normogenética e uma função sistêmica: são os fundamentos de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite ‘ligar’, ou cimentar objetivamente todo o sistema constitucional. (Conotilho, 2001, p.1127).

Desse modo, o sucesso do realização concreta das mensagens normativas do Constituição depende não só de procedimentos e instrumentas adequados, mas em grande medida da textura aberta dos princípios, que permite, além da complementariedade, a harmonização do sistema.

 

Os diferentes tipos de princípios

 

A Constituição Federal está repleta de princípios. Esses princípios, por sua vez, se relacionam, dando validade ou concretude uns aos outros. Com efeito, se subdividem de acordo com a sua importância e abrangência dentro do sistema.

Os princípios fundamentais são aqueles que foram construídos historicamente e, progressivamente, introduzidos na consciência jurídica majoritária da humanidade. Na sua grande maioria, encontram-se recepcionados expresso, ou pelo menos implicitamente, nos textos constitucionais.

Quando esses princípios são recepcionados por uma dada Constituição, tornam-se os seus princípios estruturantes. Nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho afirma que se podem definir os princípios estruturantes como sendo aqueles

[ … ] constitutivos e indicativos dos idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. São, por assim dizer, os traves-mestras jurídico constitucionais  do estatuto jurídico e político. (Canotilho, 2001, p.1137).

Observando-se a Constituição Federal (1988), principalmente os artigos do Título I (1º ao 4°) e 60, vislumbra-se que o princípio republicano encontra-se dentro dessa categoria. A República é, sem dúvida nenhuma, e incontestavelmente após o plebiscito previsto no artigo 2° do Ato dos Disposições Constitucionais Transitórias, e realizado em 1993, um princípio estruturante do ordem constitucional vigente no Brasil 2.

Ocorre, todavia, que esses princípios estruturantes, conforme já dito, ganham concretude por intermédio de outros princípios e subprincípios. Com efeito, ganham densidade e consistêncio por intermédio das suas concretizações em princípios gerais especiais, ou ainda regras constitucionais.

Oportuno destacar e lembrar, portanto, que além dos princípios, as regras (a outra espécie de norma do sistema) também possuem um papel fundamental no aumento do grau de determinabilidade e aplicação dos princípios estruturantes dentro do sistema constitucional.

Dessa forma, para a compreensão exata da extensão desses princípios basilares, requer-se não só o seu estudo em particular, mas também as suas ramificações e desdobramentos no ordenamento. Assim, analisando-se o princípio republicano, por exemplo, podemos identificar que a isonomia é sua implicação lógica, o fecundando e o materializando.

Nesse sentido, a doutrina tem classificado a isonomia como um princípio constitucional geral. E, dentro desse paradigma, o antigo parágrafo 1º do artigo 39 da Constituição Federal, qual seja, o princípio da isonomia de vencimentos entre os servidores da Administração direta e autárquica, dava ainda mais concretude ao princípio republicano e, conseqüentemente, constituía um princípio constitucional especial.

Cabe ainda mencionar que esses princípios e regras constitucionais podem ainda alcançar um maior grau de determinabilidade e consistência, por intermédio não só da concretização legislativa (infraconstitucional), como também pela jurisprudência.

 

Conflito entre princípios e a unidade da Constituição

 

Como a Constituição é um sistema aberto de princípios 3, é comum, e de certa forma intuitiva, a reflexão sobre eventuais tensões ou até antinomias entre eles. E óbvio que pretender esse sistema como uma ordem fechada e totalmente harmônica seria ingenuidade e, conseqüentemente, desprezar que ele, na maioria das vezes, é o resultado da composição possível entre vários atores da sociedade, representantes de interesses, paradigmas e inspirações diversas, quando não contrárias. Desse modo, o pacto fundamental com relação as normas (regras e princípios) constitucionais não tem a capacidade e nem a pretensão  de solucionar o antagonismo existente no pluralismo de idéias de um pacto democrático.

Por outro lado, e diferentemente das regras, os princípios não são excludentes, mas sim concorrentes, isto é, concorrem entre si numa lógica de peso diferenciado e convivência presumida. Assim, não podem ser interpretados no sentido de que a validade de um implica a invalidade do outro. Daí porque Canotilho afirma que

[ … ] os princípios não obedecem, em caso de conflito,  uma lógico do tudo ou nado, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prático, consoante o seu peso e as circunstâncias do caso. (Canotilho, 2001, p.1146).

Portanto, os princípios constitucionais enfrentam tensões, mas nunca antinomias entre eles. E essas tensões são resolvidas, no caso concreto com a ponderação do aplicador/operador sobre os pesos e as circunstâncias que ladeiam a questão. Importante frisar, todavia, que essas ponderações não são livres, mas fundamentadas no relativo grau de juridicidade objetiva desses princípios. Exatamente por isso doutrinadores destacam que o direito constitucional não se inventa e sim se descobre.

Dentro dessa seara, não se pode esquecer que o princípio interpretativo da unidade da Constituição impõe a igualdade de dignidade das normas constitucionais. Mais do que isso, supõe que o intérprete reflita sobre os princípios constitucionais como sendo obras de um mesmo autor, o que traz coerência narrativa ao sistema e, conseqüentemente, uma igualdade hierárquica desses princípios.

 

O princípio da isonomia e os servidores públicos

 

Antes de adentrar no cerne da questão, qual seja, o direito de todos os cidadãos a um tratamento equânime, é de se ressaltar e repetir o verdadeiro problema trazido neste breve relato, qual seja, a obrigatoriedade ou não da isonomia de vencimentos dos servidores públicos ocupantes de cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, haja vista a Emenda Constitucional nº 19/98 não ter mantido no seu teor a aplicabilidade expressa do princípio da isonomia.

Nesse sentido, importante destacar que a aplicação direta das normas de direitos, liberdades e garantias não significa apenas que os direitos fundamentais se aplicam independentemente da intervenção legislativa, mas que eles valem diretamente contra a lei, quando ela estabelecer restrições, em desconformidade com a Constituição. Sendo assim, mesmo que houvesse restrição decorrente do Poder Reformador, ainda assim ter-se-ia a obrigatoriedade do respeito à isonomia, sob pena de inconstitucionalidade. Todavia, não há. Portanto, entende-se que não se sustenta a tese da inaplicabilidade de vencimentos entre servidores que desempenham atribuições iguais ou assemelhadas.

Com efeito, não se pode olvidar que o princípio da isonomia, para ter legitimidade, deve ser instrumento aglutinador, e não excludente, nos termos do artigo 5° da Constituição da República, pois impôs o constituinte, ao eleger a isonomia como princípio fundamental da República Democrático Brasileira, o dever de tratamento equânime dos cidadãos, o que vincula não só o administrador e o juiz, na aplicação das leis, mas também o legislador, em sua elaboração, ou até mesmo no exercido do poder reformador. Como registra Celso Antônio de  Bandeira de Mello:

Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia, (1993, p.9).

Com  efeito, eventual lei (ou leis) que estabeleça vencimentos diversos para servidores que desempenhem cargos de atribuições iguais ou assemelhadas será flagrantemente inconstitucional por ferir não só a isonomia  mas também   seu nucleo de validade, isto é, o próprio princípio republicano. Repita-se que o preceito do igualdade é norma que visa a atingir o aplicador da lei,  bem como o próprio legislador. Dessa forma não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas a própria edição da lei se sujeita ao dever de estabelecer tratamento equânime aos cidadãos, entre eles os servidores. Nesse sentido, preciso o alerta de Hatscheck, citado por Pinto Ferreira:

O preceito da igualdade da lei não se esgota com a aplicação uniforme da norma  jurídica, mas afeta diretamente o legislador, proibindo-lhe a concessão de privilégio de classe. (Ferreiro, 1983, p.770).

Desse modo, não se justifica um servidor desempenhar a mesma função que outro e ter direito a um salário melhor (maior).

Dentro desse paradigma, Marçal Justen Filho assevera que:

[ … ] será inválida a discriminação criada pela própria lei ou ato administrativo que não retrate uma  diferença efetiva no mundo real. Sob esse ângulo o direito não cria diferença,  mas a reflete. O direito apenas pode criar o tratamento jurídico diferenciado. Mas a diferença, em si mesma existe antes e fora do direito  (Justen Filho  1998 47).

Nesse sentido, ressalto Pinto Ferreira que há determinadas exceções ao princípio da igualdade formuladas na Constituição Federal, quais sejam;

a) imunidades parlamentares;

b) prerrogativas de foro ratione  numerals em benefício de determinados agentes políticos;

c) exclusividade do exercido de determinados cargos públicos somente a brasileiros natos;

d) acessibilidade de cargos públicos somente a brasileiros, excluídos os estrangeiros;

e) vedação do alistabilidade eleitoral a determinadas pessoas [ … ] (Ferreira, 1989, p.63).

Bandeira de Mello, por sua vez, exemplifica inúmeros casos em que é possível a discriminação, bem como casos em que ê vedado discriminar. Na lição, o jurista adverte:

[ … ] o reconhecimento das diferenças que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeiro diz com o elemento tomado como fator de desigualação (fator de discrímen); b) a segunda reporto-se à correlação lógica obstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; e c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. (Bandeiro de Mello, 1993, p.21 ).

Cumpre ressaltar ainda que a norma deve observar cumulativamente esses três aspectos para ser inobjetável em face do princípio da  igualdade, ainda que o legislador, ao disciplinar as relações por meio de critérios discricionários, o deva fazer sem contrariar valores constitucionais. Assim, sintetizando as principais idéias do citado jurista, conclui-se que  a norma jurídica, para não ferir o princípio constitucional do igualdade, deverá atender aos seguintes mandamentos: a) que o fator de discrímen, em hipótese alguma, venha atingir de maneira absoluta e atual um só indivíduo; b) que deverão ser distintas entre si as pessoas e as situações que sofrerem a discriminação, não podendo a lei discriminar quanto a qualquer elemento exterior a elas (ex: quanto ao tempo); c) que deverá existir um nexo lógico entre o fator de discrímen e a própria discriminação de regime jurídico em função deles estabelecido; e d) que esse vínculo de correlação seja pertinente, em função dos interesses constitucionalmente protegidos, visando ao bem público, à luz do texto constitucional. Com efeito, J. J. Gomes Canotilho entende  que haverá observância da igualdade.

[ … ] quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária.

E segue o jurista lusitano esclarecendo que:

[ … ] existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: 1) fundamento sério; 2) não tiver um sentido legítimo; 3) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. (2001, p.401).

lsonomia, paridade, vinculação e equiparação de vencimentos

 

A Emenda Constitucional nº 19/1998 retirou a determinação especial de isonomia de vencimentos, que constava no artigo 39, parágrafo 1 ° da Constituição. Entretanto, tal fato não quer dizer que a isonomia tenha deixado de existir nas relações funcionais. Isso porque, e conforme explicado acima, o princípio geral continua em vigor, não só expressamente no artigo 5°, caput da Constituição Federal, como também em decorrência do próprio princípio republicano.

Portanto, caso ocorra, nas relações funcionais, inclusive de vencimentos, remuneração, ou até mesmo subsídios, algum tipo de tratamento desigual para situações iguais ou assemelhados, aí deverá imperar o princípio da isonomia. Todavia, a isonomia que a Constituição assegura é a igualdade jurídica, ou seja, o tratamento igual, aos especificamente iguais, ou, pelo menos, assemelhados perante a lei. Ressalte-se que a igualdade genérica que não confere direitos e deveres iguais aos servidores, também não tem o condão de igualar os seus vencimentos/subsídios. Genericamente, todos os funcionários públicos são iguais, mas podem existir (e no grande maioria existem) diferenças específicas de função, de tempo de serviço, de condições de trabalho, de habilitação profissional, entre outras, que desigualem os genericamente iguais. Assim, a questão de haver cargos de atribuições iguais ou assemelhadas é matéria que exige constatação concreta, isto é, primeiro se devem verificar as atribuições de ambos os cargas, para depois os comparar nas suas especificidades. Se eles forem faticamente iguais ou assemelhados, a lei (ou o- Judiciário, se houver omissão do legislador) deverá assegurar a isonomia de vencimentos entre ambos. Por exemplo, se as atribuições forem iguais, a lei deverá assegurar isonomia de vencimentos entre os contadores da Assembléia Legislativa e os contadores do Tribunal de Justiça do mesmo Estado. Nesse exemplo, se a lei não assegurar o tratamento isonômico, poder-se-á  recorrer ao Poder Judiciário.

A análise de atribuições iguais é tarefa relativamente fácil, entretanto aumenta a dificuldade quando se comparam cargos de atribuições assemelhadas. Com relação a esses, não há unanimidade, longe disso. Cargo assemelhado não é apenas o cargo semelhante, mas sim aquele que, além da constatação fática, o legislador, num ato de vontade, fez assemelhado a outro cargo. Portanto, a assemelhação de carreiras depende, antes de mais nada, do tratamento jurídico dado pela própria Constituição. Observe-se que a próprio Constituição apresenta exemplo do que ela entende por cargos iguais ou assemelhados, pois, ao estabelecer a paridade de vencimentos entre os Ministros do Tribunal de Contas do União aos do Superior Tribunal de Justiça (art. 73, 3°), não se referiu apenas aos vencimentos dos respectivos cargos, mas também às vantagens, impedimentos, prerrogativas e garantias. Assim, observou a substância do cargo, qual seja, o seu regime jurídico. Nesse paradigma, cargos assemelhados são os que, além de funções assemelhadas, os seus titulares possuem as mesmas vantagens, impedimentos, prerrogativas e garantias.

Por outro lado, na esfera infraconstitudonal, deve-se verificar o tratamento estabelecido pela lei (ou leis). Entretanto, nessa segunda esfera, há que se observar ainda se a voluntas legis não é arbitrária e, portanto, inconstitucional. Isso porque a assemelhação pressupõe identificação de pontos de semelhança básicos entre os cargos, os agentes, as funções e os atributos gerais de cada uma delas. Quanto aos cargos, por exemplo, deverão se observar os seus requisitos de qualificação, forma de provimento e organização interna da carreira. Já com relação às funções, mister se faz verificar as suas naturezas jurídicas, as proibições em razão de incompatibilidades e os conteúdos do trabalho. Para não se cometer o vício da inconstitucionalidade, deverá o legislador levar em consideração diversos critérios objetivos para efetuar a assemelhação de cargos. Nesse sentido, já foi bem decidido pelo ex-Ministro Moreira Alves, in verbis, que

[ … ] as funções são assemelhadas quando lhes falta identidade em razão das peculiaridades que cada Poder apresenta o serviços que, em sua substância, são os mesmos. (RTJ 96/529).

Outro fato que merece uma análise mais acurada, dentro dessa seara, diz respeito à disposição inserta no parágrafo XII do artigo 37 da Constituição Federal, qual seja, “os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciório não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo”. Prima facie aparenta uma contradição, mas no bojo de uma análise sistêmica, observa-se que o constituinte escolheu os cargos do Executivo como referência para a aplicação do princípio da isonomia, pois, como se sabe, é justamente esse Poder que detém a iniciativa privativa sobre projetos de lei que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração. Portanto, o dispositivo constitucional não significa que os vencimentos dos ocupantes de cargos do Poder Executivo deverão ser superiores, e sim que os servidores dos três Poderes têm direito a paridade isonômica de vencimentos, com base nos cargos iguais ou assemelhados do Poder Executivo. Importante destacar que essa isonomia entre servidores de Poderes diferentes se denomina paridade de vencimentos.

Ressalte-se que a paridade não se confunde com a vinculação ou equiparação de vencimentos. Enquanto a paridade (tipo de isonomia) é uma igualdade de espécies remuneratórias entre cargos iguais ou assemelhados de Poderes diversos, a equiparação é uma igualação artificial de cargos, de atribuições e denominações diversas, para fins apenas de lhes conferirem os mesmos vencimentos. Portanto, pode-se dizer que a primeira (paridade) é a igualdade entre cargos iguais, e a segunda, a igualdade jurídico-formal entre cargos ontologicamente desiguais, com fins específicos de vinculação de vencimentos entre eles. Há ainda a vinculação que, diferentemente da equiparação que é feita horizontalmente (entre carreiras diferentes), é relação de comparação vertical, ou seja, dentro da mesma carreira. Assim, vincula-se um cargo inferior (por exemplo, deputado estadual) com outro superior (por exemplo, deputado federal) para efeito de retribuição, guardando-se certa diferença de vencimentos entre um e outro (por exemplo, 75%- art. 27, § 2° da CF), de tal modo que, elevando os vencimentos de um, a outro fica automaticamente elevado.

Feitas essas considerações, conclui-se que enquanto a isonomia – e dentro dela a paridade – é uma garantia constitucional e, conseqüentemente, um direito dos servidores públicos, a equiparação e o vinculação de cargos, funções ou empregos- salvo os exceções introduzidos pelo Poder Constituinte Originário- para efeito de remuneração, são vedadas pelo _artigo 37 – XII, da Constituição Federal. Assim, quando o legislador infraconstitucional deixar de observar o princípio isonômico para cargos de atribuições iguais ou  assemelhadas não restará outro caminho ao interessado senão socorrer-se das vias jurisdicionais. E, nesse sentido, o Poder Judiciário deverá procurar identificar se realmente houve lesão, debruçando-se sobre a seguinte questão o legislador omitiu-se ou não do tratamento isonômico para ocupantes de cargos iguais ou assemelhados? Se a resposta for afirmativa, levando-se em  conta os critérios aqui expostos, deverá garantir a paridade de vencimentos. Caso contrário, ou seja, se no exame prático entender serem os cargos diferentes, obviamente deverá negar a tutela.

Conclusão

 

A  isonomia se opera não só entre servidores do mesmo Poder, como  também entre servidores de Poderes diferentes. Em outras palavras dizer que esse princípio- cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações de Poder Público- deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto:  (i) o da igualdade na lei e (ii) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo sua formação nela,  não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica.

A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada traduz imposição destinado aos demais Poderes estatais que, na aplicação  da norma legal não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.

Conforme já explanado, deve-se destacar que as regras e os princípios constitucionais nada significam  se analisado isoladamente. É preciso compreendê-los  (as regras e os princípios)  como um todo. Eles compõe um sistema normativo, dinâmico e aberto isto é uma “totalidade ordenada” como diria Babblo. Por tudo isso é fundamental visualizar  todo o ordenamento jurídico constitucional para constatar que mesmo após a publicação  da Emenda Constitucional  19/1998 que alterou o artigo 39  da Constituição Federal  com a supressão  da expressão ” isonomia de vencimentos” os servidores públicos continuam a ter direito  ao tratamento  igual perante a lei e, conseqüentemente, a vencimentos iguais para ocupantes de cargos iguais ou assemelhados.

Nesse diapasão são as palavras de Roque Antonio Carrazza. Segundo os seus ensinamentos:

[ … ] numa verdadeiro Repúblico não pode haver distinções entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, entre poderosos e humildes. É que, juridicamente, nela não existem classes dominantes, nem classes dominadas. Assim, os títulos nobiliárquicos desaparecem e, com eles, os tribunais de exceção. Todos são cidadãos·, não súditos. (Carrazza, 1998, p.44-45).

Com efeito, ou seja, aceitando que todos os homens, indistintamente possuem condições de pretender os mesmos direitos políticos, a República impõe o princípio da igualdade, como fulcro da organização política. E 0 princípio da igualdade, como é pacifico, tem um conteúdo prevalentemente negativo: a abolição e o afastamento dos privilégios. Assim, no complexo jurídico estrutural em que vivemos, fundado na igualdade e na justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, é inconcebível a concessão de privilégios entre os servidores públicos a ser conferida, indevidamente, pelo próprio governo.

A isonomia não é apenas um princípio do Estado de Direito mas também um princípio do  Estado Social. Indiscutivelmente, é o mais vasto dos princípios constitucionais gerais, sendo impositivo em todas as situações, constituindo-se num  princípio jurídico informador de toda a ordem constitucional. Está inserido na Constituição não com função meramente estética, ou servindo como adorno dela, mas constitui-se princípio que tem plena eficácia e deve ser respeitado, pois, caso contrário, estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade e ao Poder Judiciário, cabe 0 dever de sufragar inconstitucionalidades para que não seja possível a banalização dos princípios constitucionais.

Outrossim,  não se pode olvidar do princípio da unidade da Constituição, que é a exigência da coerência narrativa do sistema jurídico, deforma que as normas e princípios não poderão e nem deverão ser interpretados de formas diversas, posto que isso traria à sociedade o caos e a insegurança jurídica.

Assim, entende-se que a nova redação do referido artigo 39 apenas visou a estabelecer critérios, antes nebulosos, acerca dos vencimentos dos servidores públicos, jamais extinguindo ou eliminando os direitos dos servidores, principalmente em relação à isonomia que existe entre cidadãos que trabalham no setor público e exercem a mesmo função. Cumpre frisar, nesse sentido, que, caso fosse a intenção do Poder Reformador usurpar somente dos servidores o direito à igualdade, devê-lo-ia ter feito de formo expresso, posto que a isonomia prevista constitucionalmente aplico-se a todos os cidadãos. E, mesmo assim, entende-se que eventual norma não teria validade, pois tal alteração constitucional estaria eivada de inconstitucionalidade. Note-se que não é de hoje que nossos tribunais, até o mais alto Pretória, foram chamados a apreciar tal questão. E, em inúmeros casos, a jurisprudência pátria já reconheceu a paridade de vencimentos para cargos idênticos, ou para cargos com funções ou atribuições assemelhados, isto é, quando os cargos guardavam identidade com relação às suas funções, garantias, independência, condições gerais, enfim, preenchiam os requisitos apontados neste estudo. Portanto, conclui-se que, embora a Emenda Constitucional n. 19/1998 tenha suprimido a expressão “isonomia de vencimentos”, os servidores públicos, ocupantes de cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, continuam tendo direito ao tratamento isonômico perante a Administração Público e, conseqüentemente, o isonomia de vencimentos, não só em decorrência do princípio da igualdade, mas, principalmente, em razão do sistema constitucional vigente no país, que se materializa (concretizo) por intermédio desse princípio constitucional especial.

 

Referências bibliográficas

 

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Notas

 1 Sócio do escritório de advocacia Ubirajara Silveira. Mestre em Direito Constitucional.

2 Existem também outros principies nessa categoria, coma, por exemplo, o democrática, entretanto não serão abordadas, têndo em vista a delimitação e o foco do tema proposto.

3 Observar, nesse sentido, o prescrição do parégrofo 2° do artigo 5° do Constituirão Brasileira.

 

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