O conflito brasil-bolívia: a gota d’água da política externa ideológica

O conflito brasil-bolívia: a gota d’água da política externa ideológica

O conflito brasil-bolívia: a gota d’água da política externa ideológica

 

Revista Diálogos & Debates

Por Vladmir Silveira

No contexto mundial da globalização, assistimos a um ato despropositado do Governo Boliviano que põe em xeque não apenas a liderança brasileira no Cone Sul, mas também a maturidade político-econômica da região.

“Nós, latino-americanos, não estamos satisfeitos com o que somos, mas ao mesmo tempo não conseguimos chegar a um acordo sobre o que somos, nem sobre o que queremos ser.” (Carlos Rangel).

As relações internacionais vêm sofrendo rápidas e profundas transformações desde o fim da guerra fria. São visíveis duas grandes tendências, aparentemente contraditórias, convivendo no sistema mundial. Se por um lado presenciamos uma forte tendência à globalização, de outro verificamos também alguns impulsos no sentido da fragmentação do Estado.

A globalização é um processo antigo de aproximação e conciliação entre os Estados, principalmente no campo econômico. Limitada durante a guerra fria por causa da divisão do mundo em dois blocos antagônicos, o processo foi intensificado logo após a dissolução do conflito ideológico. Assim, na área econômica, impulsionada pelas oportunidades de lucro e acumulação de capital, assistimos à internacionalização da produção e a mundialização dos processos econômico-financeiros. Esses fenômenos manifestaram-se, em grande medida, pela intensificação do comércio internacional de bens e serviços, dos investimentos externos diretos, do comércio de tecnologia e de outras relações contratuais, promovida pela queda de barreiras alfandegárias e outras medidas protecionistas.

As conseqüências da globalização

A derrocada do bloco socialista não significou o avanço irrestrito do processo de globalização. A tendência à fragmentação continua presente no cenário internacional, como observamos na luta basca, catalã e montenegrina – para ficarmos apenas com exemplos europeus. Ela se apresenta como uma resistência a esse processo, ao buscar a preservação da identidade local, na maioria das vezes relacionando- a com a defesa de setores específicos da sociedade, com manifestações de afirmações étnicas e de outros tipos de unidade nacional, tais como a língua e a cultura. E não poderia ser diferente, tendo em vista que o atual modelo em transição baseia-se em unidades autônomas da coletividade, batizadas de Estados-Nação. Ressalte-se que esse sistema em vigor é fundamentado na clássica Teoria Geral do Estado e pauta-se no conceito de soberania para regular as relações internacionais. Evitando a discussão sobre o melhor conceito de soberania, ou a data de formação dessas entidades, o fato é que a soberania pode ser definida genericamente como o poder que os Estados-Nação gozam de fazer valer a sua vontade (dar a última palavra) legitimamente, dentro do seu território. Portanto, pode-se dizer que o Estado possui, dentro dessa teoria, o monopólio legítimo da força e o direito de prevalecer dentro do seu espaço territorial, que ficou conhecido na literatura política como a razão de Estado (raison d´État).

Sendo assim, o Estado soberano, nos séculos XIX e XX, demonstrou grande força e enorme poder de mobilização, no que pese toda a discussão sobre o seu surgimento, origens e objetivos. O ser humano passou a se identificar como membro desses Estados, além dos direitos fundamentais só serem garantidos em virtude do reconhecimento aos seus membros da qualidade de cidadão. Nesse sentido, convém citar a figura dos apátridas, que reflete muito bem o problema e as dificuldades reais existentes àqueles despojados da condição de membro dos Estados, ou seja, cidadão.

Ocorre que o fenômeno da globalização, que pode ser evidenciado pela interdependência econômica, pelas políticas econômicas regionais (ou de blocos), pela confecção de produtos industrializados em âmbito mundial, inclusive com a fragmentação da sua produção, acabou por diminuir o protagonismo dos Estados nas relações internacionais. Exatamente por isso, a segunda Convenção de Viena reconheceu também as Organizações Internacionais como sujeitos de Direito Internacional Público. E nesse novo cenário de interdependência, por óbvio, determinados assuntos do ponto de vista jurídico ultrapassaram as fronteiras dos Estados.

A América Latina e o regionalismo

Como conseqüência desse processo de globalização, nas últimas décadas a política internacional deixou de ser decidida única e exclusivamente pelos Estados. Novos atores, como podem ser as empresas transnacionais,as instituições e organizações internacionais, além das organizações não governamentais, têm participado ou contribuído no processo de tomada de decisões. Com efeito, surgiram complexas imbricações de vulnerabilidade e dependência. Assim, os Estados que anteriormente eram os únicos atores da política internacional já não mais controlam com exclusividade esse cenário. Muito pelo contrário, a maioria dos países não só perdeu a hegemonia, como também se tornou coadjuvante. Num mundo de interdependência, os Estados tornam-se reféns, na maioria dos casos, de uma tríplice escolha. A primeira opção é a busca do isolacionismo. Todavia, como todos os outros estão participando do fenômeno global, isso pode custar sérios problemas sociais, políticos e, principalmente, econômicos. Uma segunda possibilidade seria a tentativa de contenção do problema dentro do seu território, ou seja, dentro de sua área de influência (competência). Ocorre que fatos e acontecimentos recentes têm demonstrado que tal medida possui limites, quando não se verifica a sua inviabilidade prática. Uma terceira tentativa seria uma cooperação internacional, de modo que a segunda opção pudesse ter uma real eficácia.

A depressão econômica de 1929 foi uma das primeiras evidências de que a economia nacional não poderia, isoladamente, resolver todas as demandas de desenvolvimento de uma coletividade. Por isso, progressivamente foram-se adotando mecanismos que superavam o sistema de Estados- Nação. Entretanto, imaginar um Estado Global ou Supranacional ainda causa temores e preocupações não só pelas grandes assimetrias econômicas, políticas e sociais existentes, mas também pelos fatos vivenciados no último século. Fatos que demonstraram claramente que o uso irracional e distorcido da cultura, da religião e da ideologia pode se impor como forças determinantes das sociedades e, conseqüentemente, conduzir a humanidade a conflitos fundamentalistas e contrários a dignidade da pessoa humana.

Diante dessas preocupações e da irreversibilidade da globalização, o regionalismo apresenta-se como um meio termo entre essas duas tendências. Pela formação de blocos regionais, como a União Européia, os Estados buscam unificar seus mercados, primeiramente em âmbito regional, ganhando assim competitividade para, num segundo momento, caminhar rumo à abertura de sua economia em escala global. No entanto, há que se registrar que a dinâmica da integração regional também pode conduzir à formação de blocos excessivamente fechados, o que implicaria num movimento em direção oposta, ou seja, no sentido da fragmentação.

O processo de integração regional, com notável dinamismo nos últimos anos, coloca-se, dessa forma, como uma das questões contemporâneas de maior relevância devido às suas inúmeras e sérias conseqüências, sobretudo para a economia mundial. Para o Brasil, o tema da regionalização assume particular importância pela inserção do país num ambicioso projeto de integração regional – o Mercosul – e, sobretudo, pela intenção constitucional manifestada em 1988, no sentido de buscar integração econômica, política, social e cultural dos povos do continente, visando à formação da comunidade latino-americana de nações.

A relação Petrobrás-Bolívia

O Estado Boliviano, que há 12 anos exportava pouco mais de 30 milhões de dólares para o Brasil, após o investimento direto de mais de 1,5 bilhão de dólares recebe na atualidade 1 bilhão de dólares anuais, graças às atividades da Petrobrás, que representam aproximadamente 18% do seu PIB e 24% da arrecadação de impostos. Destaque-se ainda que a empresa brasileira, apesar de ter se instalado apenas em 1996, já produz quase 100% da gasolina e 60% do óleo diesel consumidos naquele país.

A decisão de priorizar o investimento da empresa na Bolívia teve como fundamento a idéia de internacionalizar a companhia, aliada à estratégia de integração dos mercados do Cone Sul.

O Decreto Supremo nº 28.701, promulgado pelo governo de Evo Morales no dia 1º de maio, nacionalizando os hidrocarbonetos (gás natural e derivados do petróleo), é um ato unilateral que violou os mais primordiais direitos e garantias privadas, tendo em vista que nacionalizou os recursos naturais e expropriou bens de empresas estrangeiras, entre elas a Petrobrás, sem a devida indenização prévia e justa. Do ponto de vista do Direito Internacional, o decreto também afronta os princípios gerais da Carta das Nações Unidas e da Carta da OEA, o Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio, em especial os seus anexos, que, como os demais tratados supracitados, tanto o Brasil quanto a Bolívia já ratificaram.

Cumpre observar ainda que o decreto de Evo Morales contraria a própria aplicação da Constituição Política da Bolívia, haja vista que nos termos de seus artigos 1º; 2º; 59, I; 157, I, 1ª parte, entre outros, são garantidos para as pessoas naturais ou jurídicas, bolivianas ou estrangeiras, o direito à propriedade sobre o capital e, acima de tudo, o respeito às instituições republicanas e democráticas.

Portanto, o presidente boliviano, ao determinar a nacionalização dos recursos naturais de hidrocarbonetos, a estatização da empresa boliviana de petróleo (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) e, ainda, a nacionalização de 50% mais uma das ações das empresas estrangeiras que operam no território boliviano – sendo que a Bolívia não possui patrimônio para pagar tal aquisição nem mencionou como resolveria a questão no citado dispositivo legal –, praticou claro confisco, violando frontalmente tanto o princípio do pacta sunt servanda como o da boa-fé, que devem nortear o direito internacional.

É importante destacar ainda que a propriedade dos referidos hidrocarbonetos já pertencia aos bolivianos, tanto por disposição da Constituição daquele país quanto pela promulgação da Lei dos Hidrocarbonetos (nº. 3.058, de 17 de maio de 2005), conforme decisão do referendum realizado justamente sobre o tema. Aliás, tal lei já determinava uma série de restrições e responsabilidades às empresas estrangeiras que participassem da exploração desses recursos naturais. Nesse sentido, pode-se dizer que o Decreto Supremo foi um ato autoritário, inconstitucional e violador de direito internacional que não só prejudica o investimento estrangeiro e o desenvolvimento da região, como também configura uma afronta direta aos direitos dos cidadãos brasileiros, que são os maiores acionistas, direta ou indiretamente, da Petrobrás.

A política externa brasileira: pragmatismo x ideologia

Deve-se observar com cautela o Decreto Supremo nº. 28.701, de 1º de maio de 2006, do presidente boliviano, assim como o posicionamento do governo Lula, pois representa a gota d’água da atual política externa. Do ponto de vista pragmático é inaceitável que o governo brasileiro se pronuncie de forma tão tímida e complacente contra um ato tão arbitrário que afeta os interesses nacionais e compromete a sua estratégia de desenvolvimento. Era de rigor: a) a convocação do embaixador brasileiro em La Paz, não só como resposta ao ato inamistoso, como também para a coleta oficial de informações; b) uma declaração oficial de preocupação com o referido decreto supremo, uma vez que não esclarece nem garante o cumprimento de regras jurídicas nacionais e internacionais; c) um pedido de desculpa formal pelos excessos cometidos na tomada das refinarias; d) um pedido de ressarcimento justo e imediato das empresas brasileiras, em razão da expropriação de bens, conforme prevêem os acordos internacionais e a legislação daquele país; e, por fim, e) uma comunicação oficial de que o Brasil não aceitará aumentos unilaterais de preços, haja vista a vigência dos contratos que regulam a matéria, nos quais existe expresso mecanismo de negociação contratual.

A situação, obviamente, é de prudência e inconformismo. O governo brasileiro emitiu sinal preocupante não só para os investidores da região, como também para as empresas brasileiras exportadoras. Pelas declarações dadas, o governo não só deixa à deriva os investimentos nacionais no exterior, como também evidencia a sua posição de isolamento regional, já exposta na combatida candidatura ao Conselho de Segurança da ONU e na inexpressiva candidatura à presidência da OMC e do Banco Mundial. A nosso juízo agiram corretamente os membros da Diretoria da Petrobrás (em especial seu presidente, que foi até mesmo desautorizado publicamente por declaração presidencial), tendo em vista que se posicionaram nas regras de Direito, bem como se colocaram à disposição para negociar, conforme estabelecido nos contratos.

Assim, espera-se não somente que o monopólio legítimo da força boliviana seja exercido no sentido da prevalência do direito e da sua própria Constituição, como também que esse episódio modifique a atual política externa brasileira para que volte a considerar as razões e os interesses de nosso Estado, o que certamente promoverá uma maior cooperação e inserção internacional duradoura. Se insistirmos com essa política externa ideológica, em breve falaremos espanhol e comemoraremos o feriado de Simón Bolívar, e não Tiradentes. A política de integração não pressupõe o abandono dos interesses nacionais nem concessões arbitrárias, mas sim a criação e manutenção de instituições e marcos que garantam uma maior confiança e segurança jurídica para os investimentos na região. É esse o papel de líder regional.

A justificativa de atos contrários ao direito, baseados na soberania, desvaloriza a democracia, desconhece os direitos humanos e cria posicionamentos políticos autoritários que tornam inúteis os esforços realizados para avançar no caminho do desenvolvimento dos povos, da confraternização das nações e na colaboração pela paz, justiça e liberdade da humanidade. Se essas colunas mestras não são respeitadas, dificilmente poderemos construir uma identidade latino-americana que seja respeitada pelo resto dos atores do cenário internacional.

Autor: Vladmir Silveira 

 

 

 

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