Humanismo jurídico e direito ao patrimônio cultural

Humanismo jurídico e direito ao patrimônio cultural

Humanismo jurídico e direito ao patrimônio cultural

 

Revista Diálogos & Debates 

Folclore, cultos religiosos tradicionais, culinária típica, cantos e danças são protegidos juridicamente. Se perdermos os valores culturais expressos em nosso patrimônio diminuiremos nossa própria essência brasileira.

Por Vladmir Oliveira da Silveira

e María M . Rocasolano

 

Dentro do estudo do Direito, como em todas as ciências, aparecem temas que podemos denomina atrativos, seja por sua novidade ou por causa do seu conteúdo. No âmbito jurídico, a problemática e repercussão do patrimônio cultural possui essa característica. O professor mexicano Raúl Ávila Ortiz o define como “O ramo dos direitos culturais que regula a investigação, proteção, conservação, restauração, recuperação e os usos dos bens culturais móveis e imóveis valiosos e os espaços em que se encontram, assim como os objetos singulares criados e legados historicamente pela sociedade através de sua evolução no tempo”.

Catalogado como um dos direitos de terceira geração, atualmente a discussão está bem acesa, tanto no que diz respeito ao seu alcance multidisciplinar como também na abrangência do seu significado, intimamente vinculado com a própria definição da cultura, sendo tudo o que caracteriza a sociedade humana – o que identifica um povo pelo modo de ser, viver, pensar e falar. Por isso é necessário que, desde o início de nossas reflexões, deixemos claro que as manifestações e visões da condição humana são complexas e comportam múltiplas interpretações. Além disso, convém destacar a influência do humanismo jurídico sobre o patrimônio cultural material e imaterial, o que abre um universo onde a humanidade se expressa da forma mais autêntica e real, qual seja, a cultura adapta as condições da existência, transformando a realidade histórica do homem.

A construção do significado de patrimônio cultural Tradicionalmente, os termos bens culturais e patrimônio cultural foram utilizados indistintamente, no âmbito internacional, o que não significa que sejam sinônimos nem equivalentes. A primeira vez em que se empregou o termo bens culturais foi na Convenção da Haia de 1954, para se referir à sua proteção, em caso de conflito armado. Na Convenção da Unesco de 1970 foram definidas as medidas que devem ser adaptadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas de bens culturais. Dois anos mais tarde, o significado e alcance do patrimônio cultural foram definidos na Convenção de 1972 sobre a proteção do patrimônio mundial natural e cultural. Com efeito, foi considerado um bem precioso para a humanidade (a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural foi aprovada pela Conferência Geral da Unesco, em Paris, em 16 de novembro de 1972; o Brasil aderiu e ela pelo decreto 80.978, de 12/12/1977). Novamente, no âmbito dos conflitos armados, no ano 1999 adotou-se uma série de medidas no segundo Protocolo da Convenção de Haia para a proteção dos bens culturais, com aplicação tanto em conflitos armados internacionais como domésticos. Desse modo, com o desenvolvimento do conteúdo do patrimônio cultural e com a idéia de protegê-lo integralmente, surgiu em 2001 a Convenção da Unesco para a proteção do patrimônio cultural subaquático.

Mais recentemente, preocupados na concretização do patrimônio imaterial, foi elaborada outra convenção para salvaguardar o patrimônio cultural imaterial e a Declaração relativa à destruição intencional do patrimônio cultural, ambas de 17 de outubro de 2003. Seguindo a advertência inicial e objetivando diferenciar significados em prol da segurança jurídica, assim como uma interpretação mais adequada, esclarecemos que o conceito de patrimônio cultural é mais amplo que o de bem cultural, pois se refere a uma “forma de herança que deve ser protegida e entregue às gerações futuras”, como ensina Janet Blake, razão pela qual nos referimos a patrimônio e não a bens culturais neste artigo. (São muitos os autores que tratam deste tema. Destacamos: Lyndel Prott e Patrick J. O’Keefe, “Cultural heritage or cultural property?”, International Journal of Cultural Property, vol. 1, 1992, pág. 307; Roger O’Keefe, “The meaning of ‘cultural property’ under the 1954 Hague Convention”, Netherlands International Law Review, vol. XLVI, 1999, pág. 26; Janet Blake, “On defining the cultural heritage”, International and Comparative Law Quarterly, vol. 49, 2000, pág. 61; e Vieira Loureiro, “A proteção internacional dos bens culturais: uma nova perspectiva”, Revista dos Tribunais, 1995, que se refere à Convenção Unidroit, pág. 364).

Os diversos tratados e convenções mencionados representam um passo importante na difícil tarefa de concretizar o significado do patrimônio cultural, que, como muitos dos chamados direitos de terceira geração, apresentam dificuldades na sua definição, por serem conceitos jurídicos indeterminados. Sendo assim, a missão de estabelecer conteúdos claros e precisos dos aspectos tangíveis e intangíveis torna-se fundamental, na medida em que esse ato esclarecerá as dúvidas acerca da proteção jurídica do patrimônio cultural e da sua relação com os direitos humanos. Mas não se pode esquecer que embora se trate de um conceito complexo e indeterminado a sua exigência é necessária, pois se refere a um determinado direito humano. Certamente, é um desafio de nosso tempo conjugar expressões culturais com categorias jurídicas e requisitos normativos que tragam efetividade aos direitos humanos. No diálogo jurídico-cultural surge, necessariamente, a seguinte pergunta: como devemos proteger as manifestações culturais que pertençam a todos? Como deve proceder o legislador quando a cultura de um país é, na verdade, uma mescla de culturas que convivem com outras? E, acima de tudo, como entender o patrimônio cultural dentro da globalização, no marco internacional dos direitos humanos?

Patrimônio cultural à luz do humanismo jurídico

As dificuldades apresentadas acima devem ser analisadas a partir do humanismo jurídico que, tendo por fundamento o homem, seus limites e interesses, mostra-se a perspectiva mais coerente para entender as manifestações humanas, que compreendem não somente as obras dos artistas, como também as criações anônimas surgidas da alma popular e do conjunto de valores que dão sentido à vida.

Assim, por intermédio do humanismo pode-se abordar o conteúdo, alcance e garantia do patrimônio cultural da humanidade, superando os obstáculos que impedem uma sociedade mais humana e mais justa. Partindo do humanismo jurídico, cujo símbolo máximo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, referência central na construção de um paradigma para a humanização do direito por denotar a vontade geral da humanidade, baseada numa ética sólida, calçada nos valores humanos, acredita-se na capacidade e no espírito de superação do homem dentro da razão e do livre-pensamento. Por isso, considera-se essencial à preservação cultural a conservação dos princípios morais, éticos e, sobretudo, da existência digna do ser humano, enquanto único e insubstituível, dotado de razão, liberdade e vontade.

Jacques Maritain, valendo-se da poderosa máxima “homo sum, humani nihil a me alienum puto”, lembra que o humanismo é toda postura cultural que visa promover a devolução do ser humano ao que é verdadeiramente humano e ao seu potencial de enriquecimento da natureza e da história. Palavras que no contexto do patrimônio cultural adquirem força expressiva e impulsionam o perfil cultural e humanista do Direito. Esse caráter adjetiva a ciência jurídica não somente como instrumento de criação humana para fins de preservar, limitar e moldar um dos princípios basilares do ser humano – sua liberdade −, mas também com o objetivo de preservar a dignidade humana por intermédio da proteção e garantia de sua cultura.O homem é um animal social mas também cultural – e neste sentido os direitos culturais, como expressão dos direitos humanos de terceira geração, têm seu fundamento no valor da dignidade humana.

Significado do direito ao patrimônio cultural no constitucionalismo brasileiro.

O constitucionalismo contemporâneo influenciado pelo humanismo universal, surgido após a Segunda Guerra Mundial, inspira o Direito com o conceito de dignidade da pessoa humana como prius lógico e deontológico, e supera o conceito individualista do ser humano, apresentando uma visão sociocultural do homem pela qual a cultura passa a ser um elemento imprescindível de proteção e garantia da existência histórica e material da humanidade, conforme ensina A. Baldassarre (cf.: Diritti della persona e valori costituzionali, Torino, 1997).

Em conformidade com essa linha doutrinária, as constituições mais recentes reconhecem os direitos relativos à identidade cultural dos grupos seguindo o conceito de minorities by will frente ao que se denomina minorities by force. (A categoria minorities by force serve para identificar os grupos cujas características distintivas são atribuídas por uma maioria que obstaculiza o processo de integração.) Assim, tutelam mediante normas e institutos jurídicos a diversidade cultural, que se expressa no artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o qual conecta o indivíduo com o ecossistema cultural e histórico no qual vive.

O direito à identidade cultural se concebe, dentro da interpretação constitucional, como o direito às tradições e instituições próprias, enfim, todas aquelas manifestações que geram as identidades particulares e coletivas, dando sentido de pertinência a um indivíduo ou a uma nação. Ele se compõe de diversos elementos, tais como a preservação das instituições pelas quais o grupo mantém a própria identidade, a atribuição de certo grau de autonomia para evitar as interferências do estado central, ou reforço da posição da minoria no processo político, seja por parte do direito internacional ou pelo direito interno. Este conceito dos direitos culturais, quase sempre, se limita à defesa de algumas garantias individuais, principalmente à autonomia dos povos e à defesa da igualdade, centrando-se, especialmente, nas populações indígenas, o que perigosamente pode trazer uma recorrente confusão, pois não devemos esquecer que, por sua própria natureza, os direitos culturais são de todos os homens.

Observe-se que cair no erro de considerar os direitos culturais próprios das minorias é, justamente, a armadilha da globalização cultural, que levada pelas mãos do neoliberalismo pretende focalizar o discurso do direito ao patrimônio cultural em populações pouco representativas para conseguir uma homogeneização cultural planetária. Logicamente, colocar no foco de atenção as exóticas populações indígenas deixa de lado o importante problema do imperialismo cultural, que gera a perda da idiossincrasia das culturas, como a oriental, européia ou mesmo a nossa cultura ibero-americana, facilitando a existência de um mercado homogêneo, tão desejado para alguns e para objetivos mercantilistas.

Dentro da perspectiva jurídica, essa ameaça atualiza o diálogo entre igualdade e liberdade, que tanto preocupou os juristas durante os séculos XIX e XX, em que a dialética dos direitos civis e sociais teve como base assegurar o desenvolvimento e a promoção da personalidade humana, não somente de poucos diferenciados culturalmente, mas de todos.

Nesse sentido, as constituições do final do século XX expressam a tensão igualdade-liberdade, levando em conta tanto os indivíduos singulares, como os grupos em que se integram, tutelando seus elementos comuns, historicamente consolidados, de natureza étnica, lingüística e cultural, isto é, o patrimônio cultural dos Estados. Um exemplo que se pode dar é o da Constituição da Nicarágua, que atribui à comunidade da Costa Atlântica o direito a conservar e desenvolver própria identidade cultural dentro da unidade nacional e se dotar de formas próprias de organização social, administrativa e econômica. Já a Constituição do Paraguai afirma que os povos indígenas são grupos culturais anteriores à formação do Estado e reconhece, no caso de conflito, a preeminência do direito consuetudinário indígena. Do mesmo modo, o art. 216 da Constituição do Brasil de 1988 obriga o Estado a promover e proteger a herança cultural formada por todos os grupos presentes no território. Na mesma linha se encontra o art. 3 da Constituição da Nigéria (1996), que garante o direito dos grupos minoritários a respeito da própria língua, cultura e religião.

Quando se faz referência aos direitos culturais falamos unicamente do reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas, esquecemos que a cultura indígena convive com a cultura brasileira não indígena, que é expressão da diversidade humana formada não somente pelo patrimônio dos índios, mas principalmente da extraordinária mistura de povos, raças e culturas ao longo da história brasileira. Note-se que esta é a identidade cultural do Brasil, como nação que, convivendo com outras, possibilita ao povo uma cosmovisão peculiar, construída por intermédio de características próprias, no transcurso do tempo,sendo este um processo de criação que deixa uma herança intangível cuja expressão universal é a denominada cultura brasileira.

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais refere-se também à proteção do patrimônio cultural que se formou ao longo dos tempos, como parte da riqueza histórica e da identidade do nosso povo. Este é o entendimento da nossa constituição de 1988, que no citado artigo 216, expressando os elementos de identidade, ação e memória, faz referência aos grupos formadores da sociedade brasileira e define o patrimônio cultural como aquele comum a uma sociedade multicultural.

Por outro lado, percebe-se no âmbito do direito internacional o direito humano ao patrimônio cultural ligado, especialmente, aos grupos minoritários, diferentemente do que ocorre no nosso âmbito doméstico. Assim, o texto constitucional de 1988 expressa o direito ao patrimônio cultural como direito fundamental vinculado à preservação humana do artigo 5º, inciso LXXIII. Desse modo, pode-se dizer que o telos ou finalidade do artigo 216 aborda os valores que se encontram no corpo social e definem sua existência. Nas precisas palavras de Miguel Reale (em Lições Preliminares de Direito), “se suprimirmos a idéia de valor, perderemos a substância da própria existência humana”. Portanto, se perdermos os valores culturais expressos em nosso patrimônio diminuiremos nossa própria essência brasileira.

A regulação internacional deixa claro que o patrimônio cultural surge no século XVII, isto é, no início da modernidade, sendo o Estado Nacional o responsável pela garantia de sua preservação. No âmbito do Estado brasileiro, a preocupação com bens culturais e imateriais consolidou-se na década de 30 e se deu, em grande medida, pelas preocupações iniciais de Mário de Andrade, que propôs um anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional (posteriormente foi criado o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional-SPAN, atual IPHAN). Data daquela época o Decreto-Lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937, que incorporou ao ordenamento jurídico o instituto do tombamento, como regime de proteção e reconhecimento do valor cultural de um bem. O tombamento como um ato administrativo possui um inegável valor constitutivo, mas só produz efeito a partir de sua edição. Esses efeitos são o conjunto de direitos e obrigações criados pelo ato de tombamento e que, tomados em conjunto, formam um corpo ordenado de prescrições denominado regime jurídico do tombamento. Embora tão importante, o processo de tombamento pode ser desencadeado por qualquer pessoa. Assim, faz parte do exercício da cidadania a possibilidade de intervenção direta do cidadão no tombamento de bens culturais, pois estes integram a herança nacional comum.

A preservação do bem cultural está vinculada à sua correta utilização e integração ao cotidiano da comunidade. Exatamente por isso a atuação do poder público deve ser exercida excepcionalmente, quando faltarem recursos técnicos, materiais ou ainda organizações coletivas capazes de assumir as ações de preservação necessárias. São diversas as formas de proteção do patrimônio cultural, que vão desde o inventário e cadastro até o tombamento, passando pelo estabelecimento de normas urbanísticas adequadas, consolidadas nos planos diretores e leis municipais de uso do solo e, até, por uma política tributária incentivadora da preservação da memória.

Em conformidade com a terminologia da classificação internacional, o patrimônio cultural se conceitua como uma variedade quase ilimitada de bens que configuram o patrimônio imaterial e material. Entretanto, por um conceito amplo, compreendem a produção cultural desde sua expressão musical até sua memória oral, passando por elementos caracterizadores de sua civilização. A Unesco, partindo dessa constatação, define como Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares a eles associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

Os bens materiais dividem-se em bens móveis (produção pictórica, escultórica, material ritual, mobiliário e objetos utilitários) e bens imóveis, que não se restringem ao edifício isoladamente, mas também seu entorno, o que garante sua visibilidade e fruição. Assim, o acervo de bens imóveis que constituem o patrimônio de um povo e de um lugar inclui os núcleos históricos e os conjuntos urbanos e paisagísticos, referências para as noções étnicas e cívicas da comunidade. Esses bens produzidos pela comunidade ganham notável significado quando se convertem em elementos de identificação dos diversos grupos. No Brasil temos como exemplos de práticas rituais o Bumba-Meu-Boi, do Maranhão, o da Viola do Cocho Pantaneira, do Mato Grosso, o do Jongo, na região sudeste, além das comidas típicas, como o Aracajé, da Bahia, compartindo o protagonismo com a riqueza arquitetônica de Olinda, patrimônio cultural da humanidade.

Esse patrimônio, especialmente valioso por sua amplitude e diversidade, foi regulado pelo Decreto nº 42.505, de 15 de abril de 2002, o que possibilitou sua proteção pelo Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível. Desse modo, o folclore, cultos religiosos tradicionais, culinária típica, cantos e danças passaram a ser protegidos juridicamente. Aquilo que antes era transmitido de geração para geração e constantemente recriado pelas comunidades corria o risco de se perder – o que ficou superado com esse decreto, que prevê quatro livros diferenciados: 1) Livro de Registro dos Saberes, no qual serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; 2) Livro de Registro das Celebrações para inscrição dos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; 3) Livro de Registro das Formas de Expressão, reservado às manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e 4) Livro de Registro dos Lugares, tais como mercados, santuários, praças e espaços onde se reproduzem práticas culturais.

Por outro ângulo, sobre os registros de bens culturais de natureza imaterial, o Decreto n° 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituído pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial-PNPI, viabilizou projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural. Esse programa de fomento busca estabelecer parcerias com instituições dos governos federal, estadual e municipal, universidades, organizações não governamentais, agências de desenvolvimento e organizações privadas ligadas à cultura, à pesquisa e ao financiamento para o desenvolvimento e proteção destes bens imateriais, o que permitirá a concretização desse direito difuso.

Conclusão

O humanismo jurídico influencia a regulação do patrimônio cultural e impõe a necessidade de uma política de preservação e não apenas a enumeração dos mecanismos legais de preservação, pois o mandamento constitucional que expressa um direito fundamental, tratado pela doutrina constitucional como um direito humano de terceira geração, exige uma política de preservação que supere o âmbito de um conjunto de atividades que visam simplesmente à proteção de bens. Na verdade o que se procura é mais ambicioso, isto é, a proteção do nosso acervo cultural.

É imprescindível ir além e questionar o processo de produção do universo que constitui esse patrimônio, definir os critérios que regem a seleção de bens e, portanto, justificam sua proteção. Em definitivo, torna-se essencial definir a posição do Estado, que, fazendo real seu caráter democrático de direito, protege e promove aquilo que o define: sua cultura. Os poderes públicos têm a obrigação de fomentar as diversas formas de proteção do patrimônio cultural, do cadastro e tombamento ao estabelecimento de normas urbanísticas adequadas, além de uma política tributária incentivadora da preservação da memória.

O direito ao patrimônio cultural supera a concepção individualista do laissez faire. Portanto, faz parte de uma positivação em que os direitos sociais se incorporam a uma nova categoria – própria dos chamados direitos da dignidade – onde se expressam todos os direitos humanos. Essa nova categoria se constrói dentro da dogmática constitucional e internacional dos diretos humanos e supera o conceito de dignidade da pessoa para afirmar uma visão holística, em que o gênero humanidade se configura como valor universal e suas manifestações podem ser observadas em diversos setores, como: 1) em relação à natureza, onde se apresenta sob forma de direito ao meio ambiente adequado para a vida digna das gerações presentes e futuras; 2) no que se refere ao direito ao desenvolvimento dos povos, quando corporifica um direito de efetividade à igualdade econômica e social e; finalmente, 3) ao se referir ao direito de proteção do patrimônio cultural como expressão da memória histórica, de natureza atemporal e apolítica do ser humano. 

Vladmir Oliveira da Silveira é doutor em Direito pela PUC-SP. Chefe de Departamento de Direito Público e professor do Programa de Mestrado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, Fadisp. María M. Rocasolano é doutora em Direito pela Universidad Complutense de Madri e dirige o Departamento Jurídico de la Cátedra de Medio Ambiente da Universidad de Alcalá de Henares.

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